sábado, 29 de novembro de 2008

QUEM MANDOU APOSTAR ?





Desvalorização do real: muitos sentiram o golpe.

A primeira a soar o alarme foi a Sadia. No final de setembro, com a disparada do dólar, a companhia processadora de carne de frango anunciava que poderia ter extrapolado os limites estabelecidos pela política de risco da empresa ao investir em mais derivativos cambiais do que necessitava para cobrir suas exportações. Instantaneamente, a companhia demitiu seu principal executivo financeiro, tirou Luiz Furlan de sua aula de tênis e o levou de volta ao conselho da Sadia.
Os anúncios que vieram na seqüência faziam crer que essa era apenas a ponta do iceberg. A Aracruz, maior produtora mundial de celulose de eucalipto, revelou que sua exposição em contratos de target forward poderia ser o dobro dos derivativos atrelados ao pré-pagamento de exportações. Uma situação crítica que só teve um sinal consistente em 4 de novembro, quando a empresa finalmente revelou o valor total da perda - US$ 2,13 bilhões, o maior anunciado -, e que esta já estava sendo renegociada com os bancos, eliminando com isso a exposição em 97% desses papéis.
A falta de informações concretas sobre o número de companhias e o montante envolvido nessa jogada pela solidez do real levava mais tensão ao mercado. A corrida das empresas para resgatar depósitos para cumprir contratos e a possibilidade de calote a bancos fizeram o mercado batizar o evento de subprime tropical. O governo estimou que cerca de 200 empresas estavam envolvidas nesse tipo de contrato, e muitos previam que o buraco poderia ser mais fundo. Afinal, ainda havia um universo inexplorado entre as empresas de capital fechado, outras que poderiam ter negociado diretamente na BM&F Bovespa, além das com contratos no exterior.
Dessa forma, em um lapso de tempo, os derivativos cambiais, que costumam ser avaliados como uma excelente forma de cobertura para as empresas exportadoras, se transformaram em vilão, dando duras lições às empresas que por um momento de euforia desviaram seu foco da proteção e buscaram esses papéis como uma máquina de lucro. Observando seus efeitos em países como Brasil, Rússia e Coréia, Paul Krugman vaticinou no New York Times que o resultado dessa aposta de risco na fortaleza das moedas dos países emergentes seria "o segundo epicentro" da crise financeira mundial.
Outro mercado emergente fortemente afetado foi o México, onde importantes empresas revelaram perdas por suas exposições a esses instrumentos. Segundo Nicolás Olea, sócio do escritório da KPMG na Cidade do México, as perdas no país se explicam porque os gerentes financeiros pecaram por uma confiança desmedida. "A estabilidade experimentada pelo peso mexicano os fez cair em uma zona confortável", explica. "Ao ver que sofriam perdas por operações em que o dólar continuava se debilitando, decidiram assumir um risco extra e apostar em operações contrárias em derivativos para ressarcir perdas anteriores e embolsar lucro extra."
Entre as companhias mexicanas que participam dessa lista estão a Cemex, com perdas de mais de US$ 700 milhões, a fabricante de tortilhas Gruma, com US$ 684 milhões; o grupo industrial Gissa, com US$ 600 milhões e a fabricante de vidro Vitro, com US$ 227 milhões. O caso mais significativo foi o da empresa varejista Comercial Mexicana, que teve que pedir ajuda a seus credores devido aos US$ 1,39 bilhão em perdas relacionadas à exposição a esses derivativos.
Mau precedente
No Brasil, ainda que permaneça a dúvida sobre quando essa onda de prejuízos tocará o fundo, a aposta é de que os anúncios bombásticos já foram dados, e as negociações em curso entre empresas e bancos acalmam o mercado. "Bolhas existirão, e é preciso acostumar-se a elas", diz Gabriel Basaluzzo, diretor do mestrado de Finanças da Universidade San Andrés, em Buenos Aires.
Mas nem todos os que estão em cima dela, grandes ou pequenos, querem aceitar isso. A empresa têxtil Vicunha, por exemplo, devia US$ 100 mil ao Merrill Lynch por perdas com derivativos, e afirmou que não pagaria alegando que a pessoa que assinou não tinha autorização para fazê-lo. Para Carlos Eduardo Gonçalves, professor de Economia da FEA/USP, esse é um precedente arriscado. "Se as empresas não pagarem, o que vai ser do mercado futuro daqui pra frente?", questiona.
Afinal, o jogo não pode ser legal apenas quando se está ganhando, e não é de hoje que as empresas o fazem. Um working paper do Banco Central chamado "Demand for Foreign Exchange Derivatives in Brazil: hedge or especulation", publicado no final do ano passado por Fernando Oliveira e Walter Novaes, analisou contratos de swaps de taxa de câmbio abertos ao final de 2002 e identificou que em períodos de grande volatilidade cambial, como em 2002, a demanda de empresas por esse tipo de derivativo está fortemente relacionada a razões especulativas, sendo as empresas exportadoras as com maior probabilidade de fazê-lo.
Além do risco da perda pelo câmbio, entretanto, o problema está na credibilidade, "já que o acontecido expõe um problema sério de governança corporativa", lembra Gonçalves. "O que o board estava fazendo nessa hora?" E há quem afirme que a aventura mal-sucedida dos derivativos seja motivo para o afastamento de investidores internacionais que buscam negócios na bolsa brasileira, e não querem saber de especulação com seu dinheiro. "O instrumento escolhido por essas empresas é simples, não fixa limites para cima ou para baixo para limitar perdas excessivas e em períodos de volatilidade moderada são eficazes", diz Basaluzzo. "Mas quando uma bolha rompe, cobra tudo de volta, e num só golpe, e a estrutura da tesouraria de uma empresa não está preparada para identificar esses momentos, pois tem seu foco na área produtiva, e não na financeira."
Para José Cézar Castanhar, economista da FGV-Rio, "esse episódio deixou claro que é errada a noção de que se pode acreditar em ajuste automático; e que os executivos precisam focar-se na finalidade da empresa, e avaliar mais seriamente os impactos de suas escolhas."
Correção de rota
Como, então, evitar o desastre? "Não se pode colocar travas nem restringir o mercado, mas do ponto de vista regulatório hoje se está facilitando ao máximo a divulgação de dados, da forma mais transparente possível", diz Edison Arisa, coordenador técnico do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), sobre a iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deliberar a exigência de informações mais abrangentes e detalhadas sobre os instrumentos derivativos que as companhias detêm em seus balanços trimestrais, a partir do terceiro trimestre deste ano. Arisa acrescenta que a CVM também pediu às empresas, de forma facultativa, que passem a apresentar uma análise da sensibilidade dos derivativos que operam, com parâmetros pré-definidos.
Para as empresas escaldadas pelas perdas de dinheiro e de moral nesse jogo de azar, a sugestão dos analistas é de trabalhar com políticas de exposição ao risco mais rígidas, como as de um banco.
Para Basaluzzo, outra estratégia possível para retornar uma empresa ao foco produtivo seria uma mudança na política interna da companhia, excluindo o resultado desses mecanismos financeiros da remuneração do CFO. "Esse executivo está aí para garantir caixa e minimizar o risco. Enquanto seja premiado por resultados, poderemos ver tal situação se repetir com mais freqüência". Já Álvaro Cyrino, professor de Economia da Fundação Dom Cabral, afirma que hoje "os executivos são remunerados pela capacidade de criar uma fantasia, e são bem remunerados porque isso é arriscado. Não há no universo condição de crescer nas taxas esperadas pelo mercado, descola-se da realidade e aí se forma a bolha". Mas Cyrino acha que esse modelo já não agrada e que "estamos começando a ver as coisas como elas deveriam ser".
Por ora, a versão do "subprime tropical" está descartada, ainda que as perdas sejam inegáveis. A torcida é para que alguma lição tenha ficado e o pior já tenha passado.
Ao menos até a próxima bolha.

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