terça-feira, 4 de novembro de 2008

Sete amargas lições de uma crise



O maior crash da história recente do capitalismo mostra que os instrumentos de controle e prevenção das companhias precisam ser aperfeiçoados


Por: Fernanda Arechavaleta e Marcos Graciani -

Revista Amanhã - RS.


A crise que abalou todo o sistema financeiro mundial, com o desmoronamento dos grandes bancos de investimento norte-americanos, ainda pode fazer muitas vítimas, uma vez que não se conhece toda a extensão das perdas das instituições alavancadas nas hipotecas podres dos Estados Unidos. Mas, se não é possível antever todas as implicações do estouro da bolha imobiliária - e nem mesmo se as medidas adotadas pelos Bancos Centrais e governos vão resolver o problema -, uma coisa é certa: as empresas terão de revisar seus processos de análise de risco e de tomada de decisão. Afinal, os desdobramentos da crise mostraram que nem todas tinham mecanismos eficientes para gerenciar os riscos a que estavam expostas - ou, se tinham, não os utilizaram adequadamente.
Mesmo tradicionais companhias brasileiras do ramo industrial, como Sadia, Aracruz e Grupo Votorantim, perderam alguns bilhões com a elevada exposição cambial. No caso da Aracruz, os prejuízos com aplicações em derivativos cambiais somaram R$ 1,95 bilhão - montante equivalente a quase o dobro de todo o lucro líquido obtido em 2007 (R$ 1 bilhão). O aperto no caixa levou à suspensão da incorporação da companhia pela VCP, no que era considerado, até agora, o maior negócio da indústria da celulose do mundo. Afinal, será preciso não só esclarecer as responsabilidades, mas, principalmente, decidir quem vai pagar a conta, a Aracruz ou a VCP . Na esteira das perdas bilionárias com a exposição cambial, em apenas duas semanas as ações preferenciais da Aracruz despencaram 65% e as da Sadia, 52%. No caso da companhia catarinense, além da demissão do diretor financeiro, o presidente do Conselho de Administração, Walter Fontana Filho, também renunciou - o que permitiu o retorno ao cargo do ex-ministro Luiz Fernando Furlan.
Para tentar compreender quais são as lições que as empresas podem retirar do maior crash da história recente do capitalismo, AMANHÃ consultou professores e especialistas em gestão de risco. Em pelo menos uma questão, há unanimidade: para não ficarem expostas a riscos desnecessários, as companhias precisam aperfeiçoar - e muito - os instrumentos, internos e externos, de controle e prevenção. Conselhos de Administração que estabeleçam diretrizes claras para a ação dos executivos, maior transparência na hora de divulgar informações ao mercado e até mesmo o fim das decisões executadas são algumas dessas lições. "Por que a Sadia não revelou ao mercado o tipo de operação financeira que havia feito?", questiona Telmo Schoeler, diretor da Strategos, consultoria especializada em estratégia e gestão de empresas e também instrutor do Instituto Brasileiro de Gestão Corporativa (IBGC).
O mesmo tipo de questionamento é feito por muitos investidores e empresá¬rios. Afinal, por que as empresas se arriscaram tanto? Até que ponto elas estão suscetíveis a ser surpreendidas com as calças nas mãos diante de um solavanco econômico de grande envergadura? "Em geral, os executivos se preocupavam em saber quanto a companhia iria lucrar, mas não se questionavam sobre qual o tamanho do risco dessas operações com derivativos. Esse é o fato", observa Pérsio DeLuca, managing director da Protiviti Brasil, empresa de gerenci¬amento de risco. Nas páginas a seguir, apresentamos sete lições que podem ajudar as empresas a evitar que uma bomba-surpresa arruíne o negócio.

1 - Crises são inevitáveis. É preciso estar preparado para enfrentá-las

A primeira lição é que nenhum segmento econômico - industrial, comercial, de serviços, agropecuário ou mesmo financeiro - escapa às intempéries do mercado. "Qualquer evento afeta a todos. É preciso não esquecer que vivemos em um mundo globalizado, no qual os mercados são interdependentes", enfatiza Miguel Ribeiro de Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac). Embora pareça bastante óbvio, muitos executivos, diz Oliveira, não costumam pensar em crise ou dificuldades nos negócios, até que elas batam à porta da empresa. "Até o final de setembro ainda havia muita gente importante e gabaritada afirmando que a crise não desembarcaria por aqui de modo algum", recorda Fernando Manfio, sócio-diretor da Witrisk Inteligência em Gestão de Risco, consultoria paulista especializada em gestão de risco de crédito ao consumidor.
O que acontece com freqüência no mundo dos negócios é que as empresas não costumam se preparar para enfrentar cenários extremos - nem para os muitos bons, com grande crescimento da economia, nem para os ruins, como crises financeiras ou recessão econômica. "Em geral, costumamos ficar atentos e nos prevenir contra os sintomas da gripe, mas não contra um câncer. Como é mais raro, não pensamos muito no câncer, embora ele costume ser mortal. Por isso é importante fazer os check-ups", diz Paulo Baraldi, consultor da Risk at Risk e autor do livro Gerenciamento de Riscos - a Gestão de Oportunidades.

2 - As estruturas de governança corporativa devem estabelecer diretrizes claras - além de monitorar o seu cumprimento por parte da diretoria

A adoção de um modelo de governança corporativa com clara delimitação de funções e poderes entre executivos operacionais, diretoria e Conselho de Administração garante maior segurança às decisões. Um bom sistema de governança permite o constante questionamento de executivos, diretores e conselheiros, bem como o alerta em relação aos riscos envolvendo as diversas decisões. Além disso, uma estrutura de tomada de decisões hierarquizada facilita a implantação de mecanismos de checks and balances (checagens e balancea¬mento). "Alguém tem de questionar os executivos sobre as razões que os levaram a tomar certas decisões, acertadas ou não", afirma Pérsio DeLuca, da Protiviti Brasil. A coordenadora do Centro de Conhecimento do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Adriane Almeida, lembra os recentes casos da Sadia e da Aracruz. "É claro que tivemos uma alta inesperada do dólar, mas com um bom sistema de governança, o Conselho estipula os riscos que a empresa está disposta a correr e pode acompanhar as decisões tomadas", diz Adriane.
Mas não basta ter estruturas de governança corporativa - é preciso que elas funcionem. "Embora as decisões do dia-a-dia sejam responsabilidade dos executivos, é função dos Conselhos definir as diretrizes. E é justamente a falta de diretrizes claras que dá margem para erros e riscos descontrolados", afirma Oliveira, da Anefac.
Para garantir que todo o sistema de governança tenha eficiência é necessário eliminar possíveis conflitos de interesse entre conselheiros, diretores e demais executivos. A criação de comitês para estudar e sugerir diretrizes sobre temas específicos ajuda a diminuir os conflitos. Recomenda-se que esses comitês tenham de cinco a nove membros, de especialidades diferentes, mas é fundamental que todos tenham tempo disponível e uma agenda anual de trabalho. "A contratação de conselheiros profissionais - movimento que vem ganhando força - também é importante, uma vez que eles podem questionar os executivos sobre o real risco das decisões tomadas", diz DeLuca, da Protiviti Brasil.

3 - Adotar mecanismos internos de gerenciamento de riscos

Outra alternativa para evitar surpresas, especialmente na gestão da dívida e na administração do caixa, é a adoção de mecanismos internos de gerencia¬mento de risco - aí incluídos desde medidores de risco até índices preestabe¬lecidos para regular os níveis de alavancagem da companhia. Uma das ferramentas de enorme utilidade nesse campo atende pelo pomposo nome de enterprise risk management (ou geren¬ciador de riscos empresariais, em bom português). "Esse mecanismo ajuda o executivo a se policiar nas decisões de curto prazo", diz Persio DeLuca. Dessa forma, não seria preciso esperar as reuniões periódicas do Conselho - geralmente mensais - para saber se a decisão é acertada ou não, uma vez que o programa calcula o risco das escolhas.
O software trabalha em sintonia com o modelo de governança da companhia. Se uma decisão contiver um risco que vai além das atribuições de determinado nível hierárquico, será automaticamente submetida à deliberação da instância superior. "Se o programa identificar que determinada decisão de curto prazo excede a alçada de um diretor, ela será levada a um nível decisório superior e pode ser até mesmo motivo para a convocação de uma reunião extraordinária do Conselho de Administração", explica DeLuca.
A exemplo do que preconiza o Tratado da Basiléia em relação aos bancos, a definição de um teto para a alavancagem - o endividamento representado pelo montante de recursos de terceiros utilizado para financiar a operação - também pode ser bastante útil nas empresas. "Ter níveis pré-determinados de endividamen¬to evita que as companhias especulem com o valor em caixa para cumprir metas operacionais", analisa Francisco Barone, coordenador do Small Business da Ebape (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas) da Fundação Getúlio Vargas. Para determinar o nível de endividamento adequado, as empresas precisam levar em conta também os cenários extremos e as situações de "estresse" do mercado. "Não existe nível de alavancagem ideal. Varia de setor para setor. Cada empresa deve encontrar a combinação certa entre capital próprio e de terceiros, de forma a maximizar o retorno do acionista - mas sem expor o negócio a riscos desnecessários", afirma Barone.

4 - Decisões importantes não podem ficar concentradas nas mãos de poucos executivos

"Percebemos que muitas das decisões equivocadas de empresas ou mesmo bancos são resultados de deliberações tomadas por um ou dois executivos, sem a consulta dos demais", observa o vice-presidente da Anefac, Miguel Oliveira. Ele acredita que, devido ao cenário econômico favorável, alguns controles foram relegados a segundo plano, deixando as decisões nas mãos de poucos executivos de nível estratégico. "Uma coisa são decisões que envolvem riscos inerentes ao negócio, mas que são tomadas por várias pessoas. Outra, é um executivo adotar sozinho determinada postura", aponta Oliveira.
Documentar as deliberações - e deixá-las disponíveis em um portal de gover¬nança - pode ser de grande ajuda para o executivo tomar decisões que vão além de sua percepção individual - especialmente quando é difícil consultar seus pares. Em outras palavras, quando um gestor precisa solucionar um problema, ele consulta todas as decisões anteriores para ver que procedimentos foram adotados. Trata-se de uma forma de gerir o conhecimento interno. "Imagine uma reunião do Conselho com a diretoria e alguém propõe investir em opções de dólar. Os presentes avaliam todas as variáveis e riscos envolvidos. Se a decisão ficar documentada, ela pode servir de base para uma situação semelhante no futuro", ilustra DeLuca.

5 - Os conselheiros e executivos não deveriam ser remunerados pelo desempenho financeiro da companhia

Um dos aspectos que ganharam evidência durante a crise financeira diz respeito aos polpudos bônus recebidos pelos altos executivos - e que continuaram sendo pagos até no caso das companhias que foram à bancarrota. No caso mais rumo¬roso, o staff do falido Lehman Brother deveria receber cerca de US$ 2,5 bilhões em bônus, pagos pelo comprador, o inglês Barclays Bank. O próprio presidente do Lehman, Richard Fuld, disse ao Congresso americano que havia recebido US$ 300 milhões em salários e bônus nos últimos oito anos. Na maioria das instituições que enfrentaram dificuldades, os executivos e conselheiros rechearam os bolsos com os fabulosos lucros obtidos com as hipotecas do subprime e operações em derivativos.
"Não havia comprometimento com a gestão de longo prazo, porque eles estavam sendo remunerados pela perfor¬mance anual", explica Nilton Cano Martin, professor do MBA em Controles Internos da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi). Algo parecido já havia acontecido na crise das fraudes dos balanços da Enron e de outras companhias, no início da década, em que os bônus pelo bom desempenho financeiro levaram os executivos a maquiar os resultados das companhias. Por essa razão, vá¬rios especialistas passaram a defender a idéia de que os altos cargos não devem receber bônus adicionais pela performance financeira da empresa. "Quando se paga esse tipo de adicional, não se pensa na continuidade empresarial, apenas em resultados de curto prazo", opina Martin.

6 - Balanços transparentes e comunicação adequada com o mercado são fundamentais

Um dos cânones da transparência no mercado acionário é o balanço das companhias. Porém, justamente nesse ponto é que se encontra um dos maiores problemas apontados por especialistas. Muitas demonstrações financeiras, por exemplo, trazem notas explicativas que não fazem jus ao nome. Um estudo, feito pelos contabilistas catarinenses Leandro Luis Daros e José Alonso Borba, há cinco anos, revelou que entre as 20 maiores empresas brasileiras não-financeiras, a maioria omitia informações relacionadas às transações com derivativos. "Esse tipo de informação deveria estar claramente explicitada nas demonstrações contábeis divulgadas ao mercado", afirma Daros.
Outro problema é que, às vezes, nem as próprias auditorias entendem a complexidade das operações e acabam colocando apenas informações genéricas sobre elas. "Com certeza, as demonstrações financeiras deveriam ser bem mais transparentes também em relação às operações cambiais. Quem sabe até um quadro explicativo dizendo qual é o risco para cada nível de câmbio", sugere Adriane Almeida, do IBGC. Para DeLuca, não basta só escrever no balanço que o nível de endivi¬damento da empresa está compatível com a média do setor. "O calcanhar de Aquiles é que não há parâmetros para dizer com precisão qual seria o índice mais adequado", afirma DeLuca.
Para outros consultores, no entanto, não adianta criar muita burocracia. "Não é a informação do balanço trimestral que vai evitar uma crise. Não foi a falta de comunicação ao mercado, mas a ausência de regras claras que levou muitas empresas a enfrentar problemas", aponta Miguel Oliveira, da Anefac. Com as mudanças na Lei das SAs - que prevê auditorias e balanços de acordo com as normas do Inter¬¬- national Financial Re¬porting Standards (IFRS) -, a expectativa é de que ocorram avanços no sentido da transparência diante do mercado.

7 - Foco no core business e conservadorismo nas operações financeiras que envolvam riscos

oco no core business é a palavra de ordem que emerge desta crise. Isso significa adotar uma postura conservadora e não tentar ganhar dinheiro com operações (financeiras ou não) estranhas ao próprio negócio. Em geral, quando empresas operam fora do mercado em que deveriam atuar criam-se desequilíbrios. Claro que todas as empresas podem - e até devem - utilizar os recursos em tesouraria para rea¬lizar operações de hedge cambial, especialmente no caso das exportadoras. "O que aconteceu dessa vez é que se passou do limite. Querendo aproveitar o momento, algumas empresas foram muito além do recomendável", critica Alex Agostini, economista da Austin Rating.
Na opinião de Leandro Daros, os instrumentos derivativos deveriam ser utilizados apenas para prevenção contra even¬tuais variações cambiais. O problema é quando empresas industriais decidem especular com esses instrumentos em mercados desconhecidos e que envolvem grandes riscos - e sobre os quais a empresa não tem ne¬nhum controle. A mesma opinião é compartilhada por Roberto Lamb, professor de Finanças da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "A maior lição de toda essa crise é que uma empresa não pode especular com o caixa, pois a tesouraria não é um centro de lucros", enfatiza.

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